Cresci nos anos 80 na parte nova de Benfica, um arrabalde para onde se
mudaram muitas famílias nos anos 60. Muitos dos prédios, segundo sei, não
tinham sequer direito a arquitectos, eram desenhados por engenheiros que pediam
depois aos gabinetes de arquitectura uma assinatura para que o projecto fosse
aprovado. Estes edifícios, tão organizados como cinzentos, eram coloridos pela
cultura "pop" que importávamos dos Estados Unidos. É muito importante
conhecer o contexto em que passei a minha infância. Estávamos no fim da Guerra
Fria. Ouvia falar na Perestroika sem saber muito bem do que se tratava,
e, nas notícias e nos jornais, no braço de ferro entre Reagan e Gorbatchev, na
ameaça constante de uma guerra nuclear ou no mega-vilão Gaddafi que nos
destruiria com um mero premir de um botão. Esta ameaça existia e metia-nos
medo.
Porém, nada disso me interessava verdadeiramente. Era uma criança. A
América que eu queria estava nos videoclubes. Verdade seja dita, não sabia distinguir a cultura americana da
nossa. Todos queríamos ser americanos. No meu armário, as t-shirts do
Michael Jackson. Na parede, um poster do E.T e outro da Madonna.
Nas ruas e nos programas da tarde, a competição feroz para ver quem melhor
dançava breakdance. No entanto, a Guerra Fria estava presente nos
grandes écrãs. Se o americano Rocky Balboa lutava contra o russo Ivan Drago, a
mensagem política não podia ser mais clara - o Rocky teria de ganhar porque os
russos eram maus. Lembro-me do dia em que a pequena sala de cinema no Fonte
Nova aplaudiu de pé a vitória de Rocky contra o "mau". Estes filmes
serviam para nos entreter, mas aproveitavam para nos educar desde cedo de quem
eram os bons e os maus. Lembro-me que, já a entrar na adolescência, quando os
gringos e os soviéticos finalmente lá se começaram a entender, dei por mim a torcer por um russo pela
primeira vez no filme Red Dawn (1984), que era interpretado por Arnold
Schwarzenegger e que tinha como amigo um americano, o James Belushi.
A canção Born in the USA tornou-se
um hino. Sentíamos sempre um misto de inveja e de um complexo de inferioridade
perante aquela que era a maior potência bélica e cultural do mundo. No entanto,
nenhum de nós percebia que havia uma lavagem cerebral subliminar, porque, no
meio desta propaganda, contavam-se algumas das melhores histórias e algumas das
mais originais narrativas que, até ao dia de hoje, continuam a marcar o nosso
imaginário colectivo. E, se muitas delas eram a favor do governo americano e o
protegiam, muitas outras atacaram-no com unhas e dentes. O poder das grandes
corporações americanas era atacado em filmes como Total Recall (1990) ou
Robocop (1987). O consumismo e a apatia eram criticados em filmes como Dawn
of the Dead (1978) e
o perigo da tecnologia desenfreada era um dos alvos de Terminator (1984) ou
de War Games (1983) .
A gigante indústria de comics e
dos filmes, em Hollywood, fez com que a nossa própria imaginação levantasse voo.
Os bonecos do Star Wars (1977) foram a minha companhia enquanto
brincava, e, nos pinhais de Tondela, nas férias, os galhos das árvores eram os
sabre-luz dos cavaleiros jedi. Devido ao crescimento e desenvolvimento
desta indústria, melhoraram também as histórias, os argumentos e as tecnologias
dos filmes. A América exportava os livros, os filmes e a música que
consumíamos, e nós adorávamos. Somos do tempo em que havia telediscos, e não videoclips,
em que as salas tinham projecção em 70mm. Foram tempos mágicos, e era para
mim um motivo de orgulho saber quem eram os actores, os músicos e os técnicos
responsáveis por essas obras de arte.
Muitos anos mais tarde, ao entrar na
faculdade, apaixonei-me por aquela que considero ser a melhor coisa que
originou esse país. O jazz. Este género de música, que nasceu do
sofrimento dos escravos, foi ganhando um papel cada vez mais importante na
minha vida. Foi por causa dele que um dia fiz as malas e rumei ao país que
tanto me inspirara - a América, com todos os seus defeitos e virtudes.
Cheguei a Boston no dia em que
morreu a princesa Diana. Completamente focado na música, vi-me rodeado de
fontes de inspiração. Concertos, jam sessions e palestras de muitos dos
meus heróis musicais de infância. No entanto, o meu passado voltava para me
assombrar - ao terminar o dia de estudo na música, descobri a secção Midnight
Movies na defunta Tower Records. Os meus dias tornaram-me mais
interessantes: naquela secção, descobri os filmes americanos que não chegavam a
Portugal - filmes de zombies, de mulheres na prisão, de gore gratuito.
Filmes feitos por paixão e só por paixão, sem concessões à indústria ou à
política. Filmes feitos por guerreiros cinematográficos, que se viam
marginalizados naquela pequena secção do videoclube.
Foi também nesses sítios que, numa
mistura de puro gozo e investigação, mergulhei no universo dos standards, dos
temas do cancioneiro americano, e no repertório gigante de filmes musicais da
RKO e da MGM, desde os irmãos Marx ao Fred Astaire.
Ao regressar a Portugal, quatro anos
depois, senti a responsabilidade de começar a fazer coisas. Mais do que
responsabilidade, sentia uma enorme ansiedade por contar histórias,
influenciadas por aquelas que me acompanharam por tantos anos. Desde esse dia,
tento usar as ferramentas que conheço, assumindo aquilo que sou: uma gigante
mistela de influências. A cultura pop americana teve um impacto tremendo
naquilo que sou. Não o poderia evitar. Está-me no sangue e cresci com ela, foi
a minha companhia e a minha melhor amiga, ao ponto de ter percebido em Boston que
nós, no nosso cantinho à beira-mar, conhecemos melhor a cultura pop americana
do que a maioria dos meus colegas de universidade que lá tinham nascido.
Com os anos, percebemos que há
algumas coisas que, pela velocidade a que se movem, não poderiam ser feitas por
americanos. Ao estarem isolados da sua cultura frenética, os países de leste
desenvolveram a sua forma muito peculiar de ver o mundo e a ficção científica,
oferecendo-nos pérolas como Solaris ou Stalker. Só mais tarde, e
com o declínio do grandioso império americano na opinião pública, começámos a
ver que existem mais coisas. Que, apesar de sermos um país pobre e de recursos
limitados na concretização de projectos, não somos pobres em ideias. E, cada
dia mais, tentamos apreciar a nossa própria herança cultural, em qualquer
formato que seja.
Até ao dia de hoje, o meu próprio trabalho era um reflexo às fontes de
inspiração que tive. Os filmes, as músicas, os livros de banda desenhada. É o
que faço. Cada dia mais, no entanto, tento afastar-me de tudo isso, porque só
assim poderei fazer algo que não seja um parente pobre das gigantes produções
que eram o resultado de uma indústria tão grande como o país que a gerou.
Cabe-nos a nós, agora, passadas
algumas décadas, a análise crítica desse período fascinante e glorioso da
cultura pop americana. Como referi acima, as histórias que foram
contadas foram intemporais ao ponto de, hoje em dia, se investir mais em remakes
ou reboots das criações mirabolantes do passado. A indústria
americana está em queda criativa: exceptuando alguns visionários, a norma é um
gigante micro-ondas criativo onde se vão aquecer as grandes ideias do passado
recente.
(mais sobre filipe melo aqui)
Perguntas para entrevistar o Filipe Melo amanhã:
ResponderEliminar1- Em que medida acredita que os vilões de séries de banda desenha (ou outros produtos de cultura popular Norte Americana) são construídos para a demonização dos discursos que fogem ao status quo dos valores da sociedade americana e de que forma essa construção afectou a construção dos teus vilões nas Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy? Casos disto seriam, por exemplo, a representação do discurso de black power e black nationalism pelo super vilão Magneto ou a utilização do Hitler enquanto super vilão em vários comics.
2- Uma vez que há vários reaproveitamentos de estórias e personagens antigas, de que forma são aproveitados clichés obsoletos? Por exemplo, no último filme do Capitão América o super vilão é baseado num vilão de origem soviética dos comics da guerra fria, no entanto isso é perdido. Até onde chega esta perda? Até que ponto empobrece o filme?
3- Como pessoa para quem a música tem um papel tão fundamental na produção artística, seria interessante saber se imaginou/compôs alguma banda sonora que acompanhasse as suas novelas gráficas, e como seria esta banda sonora.
Perguntas para a entrevista de amanhã:
ResponderEliminar1. Se há um esforço da parte do Filipe Melo para se afastar dos clichés da cultura pop americana, como é que isso se reflecte n'As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy?
2. Como o Filipe Melo referiu no texto há uma tendência para reciclar filmes antigos. De que forma essas adaptações servem para subverter os ideais originais e para suportar os modernos?
3. Acha que o que nos chega continuam a ser maioritariamente os filmes de propaganda ou se os filmes "feitos por paixão e só por paixão, sem concessões à indústria ou à política" já estão a fazer parte do nosso imaginário de pop culture americana?